Afinal, pode-se cumprir pena por desacato?

Este texto foi publicado no site wwwcartadenoticias.com.br. Para acessar a versão original clique aqui.

 

Ao adentrar em uma delegacia do Vale do Aço, percebo um letreiro com os seguintes dizeres: “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela é crime – art.331 do Código Penal (CP)”. Eis a descrição do crime de desacato, tanto falado nas incursões policiais nas ruas e nos boletins de ocorrência. Pois bem, o Superior Tribunal de Justiça, em julgado recente, mudou seu entendimento em relação a este tema, o que foi muito bem vindo, por sinal, por evitar resquícios de arbitrariedades persistentes em nossa história. Será que essa posição se sustenta?

Em primeiro lugar, o desacato visa a proteger a Administração Pública, a função pública. A vítima primeira deste crime é o Estado. Desacatar é ofender o funcionário público, com o intuito de humilhá-lo ou desprestigiar a atividade administrativa. Qualquer um pode incorrer nesse tipo de crime, mas o advogado, no exercício de sua profissão, em juízo ou fora dele, possui imunidade profissional. Claro que eventual excesso por parte do profissional do direito, a Ordem (OAB) poderá punir por meio de sanções disciplinares (art. 7º, §2º do Estatuto da OAB).

Muitos me perguntam o que seria exatamente desacatar uma autoridade pública. A forma é livre, ou seja, pode-se agredir fisicamente, ameaçar, gesticular, xingar etc. Portanto, há várias maneiras de ser detido em razão dessa previsão, o que dá oportunidade a manifestações arbitrárias por parte do Poder Público, especificamente da atividade policial. Tendo isso em vista, a legislação internacional afirma categoricamente que o desacato deveria ser descriminalizado.

De fato, a Convenção Americana de Direitos Humanos – o Pacto de San José da Costa Rica -, ratificada pelo Brasil, prevê a liberdade de expressão e serve de base para a descriminalização do desacato. Essa medida almeja impedir abusos de poder, como a tentativa de silenciar opiniões e ideologias contrárias ao status quo. Em 2000, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos aprovou a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, cuja posição sobre o desacato restou evidente: as leis de desacato são contrárias ao humanismo e ao Estado Democrático de Direito.

Sendo o Brasil signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, vem a dúvida a respeito do conflito entre uma norma do Código Penal, art. 331, e uma norma internacional, art. 13 do Pacto. Qual deve imperar? Segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), os tratados internacionais de direitos humanos, incorporados pelo Brasil, possuem o status de norma jurídica supralegal. Assim, eles estão abaixo da Constituição Federal, mas acima das demais normas infraconstitucionais. É como se houvesse uma camada intermediária entre o topo, a Constituição; e a base, o restante do ordenamento jurídico. Há situações, inclusive, que a norma internacional de direitos humanos atinge o status constitucional, ficando no topo, dependendo da forma como o Congresso Nacional integra a matéria.

Dessa forma, para o STF, a Convenção Americana mencionada está hierarquicamente acima de qualquer lei ordinária ou complementar, como o Código Penal brasileiro. Por conta disso, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, no final de 2016, que o crime de desacato, previsto no art. 331 do Código Penal, não mais subsiste em nosso ordenamento jurídico, exatamente por ir de encontro ao artigo 13 do Pacto de San José da Costa Rica. O tratado internacional, assim, retirou a eficácia normativa da regra penal, a invalidou, portanto.

Todavia, como o Judiciário brasileiro vem demonstrando ao logo desses tempos, a segurança jurídica está longe de ser absoluta. A 3ª Seção do STJ decidiu manter o desacato como crime, conforme previsto no art.311 do Código Penal. Esclarecendo o ocorrido, o STJ possui duas Turmas que tratam de matéria criminal, via de regra a 5ª e a 6ª. Quando há uma divergência relevante no tratamento da questão, a 3ª Seção julga o processo a fim de uniformizar o assunto.

Assim, a 5ª Turma havia decidido que desacatar funcionário público não era crime, devido a um tratado internacional incorporado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Posição que confesso ser de minha preferência. O tema, porém, não se encontrava pacificado dentro do STJ, que sistematizou, finalmente, em Maio de 2017, pela criminalização.

Dois argumentos foram usados para embasar essa decisão. O primeiro diz que a punibilidade ainda estaria presente com o fim do desacato, pois a injúria conteria o crime abarcado, art. 140 do CP. O segundo lembra que a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos admite punição para excessos na liberdade de expressão, visto que esta não é um direito absoluto. No caso brasileiro, aquele agente público que agir de forma autoritária poderá ser processado pelo crime de abuso de autoridade.

É preciso frisar que o tema ainda será apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, portanto, há chances de se alterar novamente o resultado. Enquanto isso, o cidadão brasileiro continuará sujeito às indecisões dos magistrados superiores. Pode-se dizer que os dois julgamentos, embora contrários, estejam corretos, a depender do referencial. No primeiro, realizado pela 5ª Turma, a decisão considerou a realidade nacional, a qual o título ou o distintivo existe para conservar arbitrariedades. Já o segundo julgamento, o da 3ª Seção, considerou apenas o sentido literal da lei, sem contar com possíveis alterações nas relações fáticas subjacentes à norma jurídica, como mudanças no cenário jurídico, político, econômico ou social do país. Diante de tantas reviravoltas em curto tempo, a pergunta inicial permanece: será que essa posição se sustenta?

Guilherme Resende

Advogado do Escritório Jayme Rezende Advogados Associados