Recentemente, o Município de São Paulo, por meio de seu vereador Rubinho Nunes, recebeu o protocolo de instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). O objetivo declarado era fiscalizar organizações não governamentais que se beneficiavam com a miséria da cracolândia paulista. O objetivo oculto foi revelado no púlpito do parlamento: desmascarar o padre Júlio Lacellotti. Mais uma vez a história trágica se repete de forma farsesca.
A resposta do Padre Júlio foi sucinta: a CPI é legítima. Será mesmo? A legitimidade advém apenas de requisitos jurídicos ou o Direito requer uma teoria de justiça a ser cumprida? Para uma CPI ser legal, no sentido jurídico, é necessária a assinatura de um terço da câmara municipal de São Paulo; portanto, o tal vereador não está sozinho nessa. Em tese, a CPI é um instrumento essencial para a democracia, uma vez que a minoria poderá fiscalizar uma maioria, poderá ser ouvida e ter influência no coletivo. A exigência que se faz é determinar um fato, um tempo e respeitar a proporção da Casa.
Obviamente, o trâmite foi obedecido e a CPI devidamente protocolizada, embora ainda não formada. Inúmeros vereadores, por pressão midiática ou popular, disseram que iriam retirar suas assinaturas; outros, que não leram o requerimento de abertura. Duas situações graves. No primeiro caso, o quórum de um terço é verificado no protocolo, e não durante o trâmite da comissão, ou seja, a retirada a posteriori não teria o condão de impedir a formação da CPI.
No segundo caso, um representante político assinar um documento sem o ler é atestado de néscio. A desculpa de receber vários formulários ao longo do dia, sendo, por isso, contraproducente ler todos, é deliberada falta de esforço cognitivo adequado, ou seja, é preguiça mental irresponsável, porque, pelo princípio administrativo da indisponibilidade do interesse público, os vereadores cuidam da coisa pública.
As regras externas são sempre usadas para se impor uma retidão de caráter e de legalidade. Nada mais farisaico. O Senhor do Padre Júlio também passou por um julgamento pelos pares, também andava entre fracos e oprimidos. Os doutores da lei sempre o tentavam a escorregar na letra fria da lei. Quando souberam que os primeiros serão os últimos, o orgulho ferido de vencedores do mundo não aguentou. Levaram-no para a corte, para ser cancelado.
“Um cancelamento por conta de uma denúncia apócrifa
ou de “ouvir dizer” não é aceitável para se abrir uma
investigação criminal”
Onde há miséria, há opulência. A economia anda lado a lado com o modelo social implantado. Olhemos o suco de
Brasil de nossas cidades, onde belos bairros bem localizados se encontram entre favelas. São vizinhos das casas mais caras do país. Os miseráveis do mundo, dos quais os viciados em drogas lícitas e ilícitas fazem parte, nutrem seus vícios de quem? Pelas últimas investigações da polícia federal, um empresário famoso e influencer fitness possui uma fábrica de químicos com notas frias. O suficiente para produzir toneladas de drogas; tanto que em seu relatório de indiciamento trazia tráfico equiparado, associação para tráfico e lavagem de dinheiro.
Silêncio sepulcral no meio farisaico. Os narizes estão muito elevados para enxergar um semelhante equivocado. O dedo em riste serve para inferiorizar os que consideram ser escória social. Um instrumento legítimo de democracia, como a CPI, é usado de forma farsesca, porque não visa a resolver um problema social da localidade, como o vício em droga, mas, sim, para politicagem, no intuito de tudo permanecer como antes.
Alguns diriam que as pessoas são falíveis, podendo o padre cometer erros. Fato. Estamos cheios de falsos cristos e falsos profetas, porém, novamente nos fiando no direito pátrio, um indiciamento, um inquérito deverá obter, no mínimo, indícios de autoria e materialidade. Um cancelamento por conta de uma denúncia apócrifa ou de “ouvir dizer” não é aceitável para se abrir uma investigação criminal. O dano estará feito e propagado antes que se oportunize uma defesa ou um contraditório efetivo.
A tragédia já aconteceu no passado, e lavamos as mãos. Hoje, mais uma vez acontece, a farsa é tinhosa e estridente, mas parece que não temos olhos e ouvidos para identificá-la.
* Professor e Advogado do escritório Jayme Rezende, com canal no Youtube Direito de Prosa.