Mulher, a quem pertence o seu corpo?

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Uma Comissão da Câmara dos Deputados aprovou a PEC 181 que, basicamente, pretende vedar a prática do aborto, inclusive em casos de estupro. Cabe, então, examinar como é tratado o aborto pelo ordenamento jurídico brasileiro, sem abarcar qualquer argumento religioso.

O aborto é descrito como crime pelo Código Penal nos artigos 124 a 126. Contudo, em seguida, no artigo 128, o Código traz duas hipóteses excludentes: para salvar a vida da gestante e no caso de gravidez fruto de estupro.

Além do Código Penal, a Jurisprudência permite duas hipóteses adicionais: quando o feto é anencéfalo e quando se está no primeiro trimestre da gestação. Este último caso não é vinculante, uma vez que a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu descriminalizar o aborto em uma situação específica, válida somente para esta demanda judicial. De qualquer forma, já demostra um viés progressista do STF que poderá servir para futuras decisões. Eis como o aborto é juridicamente tratado no Brasil, em síntese.

Todavia, o Senador Aécio Neves (PSDB) propôs uma Emenda Constitucional tendente a ampliar a licença maternidade de mães com bebês prematuros. Até aqui nada a declarar, mas, como diz o provérbio, o diabo está nos detalhes. O deputado Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP) alterou parte do Projeto de Lei do Senador para colocar que a dignidade da pessoa humana existe desde a concepção (altera o artigo 1º, inciso III da Constituição Federal) e que o direito à vida é inviolável desde a concepção (altera artigo 5º, caput). Por esse motivo, o projeto está sendo chamado de Cavalo de Troia, pois a carcaça, montada pelo senador mineiro, trata de licença-maternidade, enquanto o conteúdo, do deputado paulista, vai além.

Essa mudança representa os anseios parlamentares de uma bancada fundamentalista cristã, de várias vertentes religiosas. A votação na Comissão ficou em 18 a 01; em termos mais claros, 18 votos masculinos contra 01 voto feminino. É uma maioria de homens decidindo sobre os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. Contraditoriamente, segundo o Instituto Anis, o perfil da mulher que aborta não é o da jovem dita irresponsável em sua maioria, mas sim o da casada cristã.

Partindo da premissa de que o Estado é laico, ou seja, não representa crença confessional alguma, as leis não deveriam se fundamentar em fé. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recentemente divulgou dados que a proibição do aborto no mundo não ocasionou a diminuição dos casos, pelo contrário, em países sem tal discriminante, a taxa de aborto é menor. O relatório vai além ao dizer que 45% dos abortos são realizados de forma insegura, quando muitas mulheres morrem. Em relação ao Brasil, quem mais sofre com procedimentos insalubres são as mulheres pobres e negras, visto que as de classe média e alta obtêm acesso a clínicas clandestinas por cerca de R$ 3.000,00, conforme expôs a jornalista Talita Bedinelli, do jornal El País (14/11/2017).

O Projeto de Emenda Constitucional 181 vai completamente de encontro ao explanado pelo Ministro Roberto Barroso, que afirma ser o crime de aborto uma violação aos direitos fundamentais da mulher, na medida em que se suprime sua autonomia, sua integridade física e psíquica, seus direitos sexuais e reprodutivos, bem como infringe a igualdade de gênero ao levar um impacto desproporcional sobre as mulheres, em especial as pobres.

Essa é uma discussão bem atual, por estar o Direito em profundo contato com a Bioética. Chamamos esse contato de Biodireito, que trata, sucintamente, de permissões e sanções a comportamentos médico-científicos. Esse ramo possui alguns princípios que poderiam resolver o tema.

Princípios, como o da Autonomia, o da Beneficência, o da Justiça, poderiam orientar representantes políticos e juízes a decidirem a respeito da legalidade do aborto em determinados casos. Proibir a mulher de ser a responsável pelo seu próprio corpo é obstaculizar o seu desenvolvimento pleno, é contrariar sua autonomia. Proibir o aborto causa comprovadamente mortes proporcionalmente maiores na parcela pobre e negra da população, além de não diminuir a incidência total (dados da OMS), o que viola o princípio da beneficência. Proibir o aborto por uma questão divina em casos de estupro, por exemplo, não me parece ser uma medida de Justiça.

De toda forma, a PEC 181 ainda não foi sancionada. Esperemos muito debate com a sociedade a esse respeito para que, seja qual for o resultado, ele seja tomado democraticamente. O controle sobre o corpo de vocês, mulheres, está em pauta; qual é a sua posição?

Guilherme Resende

Advogado do Escritório Jayme Rezende Advogados Associados