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Tenho um tio apaixonado por futebol. Ele se entusiasma mais com o manto rubro-negro de seu time do que com suas filhas ou sua namorada. Vai entender a situação. Eu nunca o vi sem uma camisa de sua equipe, mas já o vi, vários dias, sem namorada ou filha. Contudo, gostamos dele, mesmo com esse peculiar comportamento.
Recentemente, uma polêmica tomou conta da mente dele e, aparentemente, da do Brasil. O Supremo Tribunal Federal (STF) teve que resolver uma questão futebolística, como se fosse essencial para a Justiça nacional solucionar tal matéria. Para melhorar o cenário, digamos que tenha sido apenas uma decisão em cumprimento do Princípio da Inafastabilidade de Jurisdição, presente no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, que afirma que a “lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
A polêmica começou em 1986, quando Flamengo, Fluminense, Vasco, Botafogo, Corinthians, Palmeiras, São Paulo, Santos, Grêmio, Internacional, Atlético Mineiro, Cruzeiro e Bahia romperam com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Dessa desunião, uma nova instituição foi gerada: o “Clube dos Treze”. A primeira decisão desta entidade foi não participar do campeonato brasileiro de 1987, uma vez que iriam formar o próprio campeonato, a chamada Copa União, que teve a participação também de Coritiba, Goiás e Santa Cruz.
Como se nota, os clubes mais fortes do país, representantes da Região Sul e Sudeste, estavam na dita rebelião, o que deixou a CBF, no mínimo, assustada com a perda de visibilidade e importância no cenário nacional. Assim, buscaram negociar com a nova entidade, a fim de evitar a fragmentação do seu lucrativo reinado.
A proposta foi a existência de um campeonato brasileiro formado por dois módulos, o Verde, com jogos entre os representantes do Clube dos Treze, e o Amarelo, com jogos entre os demais times fiéis à CBF. O campeão e vice de cada módulo participariam de um quadrangular final para sair o verdadeiro vencedor de 1987. Acontece que o Clube dos Treze não se seduziu com a oferta, conseguintemente, os dois campeonatos ocorreram simultaneamente.
Enquanto o campeão da Copa União foi o rubro-negro carioca, time do meu estimado tio, em cima do Internacional de Porto Alegre, o Sport de Recife venceu o “Módulo Amarelo” da CBF em final contra o Guarani de Campinas. Portanto, em 1987, tivemos, na prática, dois campeões brasileiros, embora oficialmente o campeão tenha sido o Sport.
Em nova tentativa de solução, a CBF em 1988 marcou um encontro entre os 04 finalistas, contudo, Flamengo e Internacional não compareceram. É o famoso W.O, pelo qual Sport e Guarani passaram diretamente para a partida final, cujo placar foi 1×0 para o time pernambucano.
A imprensa, majoritariamente da Região Concentrada do país, encampou a ideia do Clube dos Treze, ao declarar o campeão o Clube de Regatas Flamengo. Dessa maneira, o Sport propôs ação judicial para que fosse declarado verdadeiro o regulamento da CBF. A demanda teve como partes a CBF, a União, o Flamengo e o Internacional, tendo sido julgada procedente, isto é, o campeão brasileiro de 1987 foi realmente o Sport.
Todavia, como se ouvisse as preces do meu tio, a CBF tentou melhorar o tema ao editar uma Resolução (02/2011), declarando que ambos seriam os campeões nacionais de 1987. Em uma única canetada, a CBF conseguiu, assim, desagradar gregos e troianos, pois cada um queria para si o título nacional. Para alguns torcedores, não considerar o seu time do coração como verdadeiro campeão era um absoluto sacrilégio. Sou mais da turma do técnico da seleção italiana de 1994, Arrigo Sacchi, para quem o futebol é a coisa mais importante dentre as menos importantes. Em suma, o esporte para a humanidade não tem relevância considerável, conquanto para entreter tenha um enorme mérito.
Voltemos para o Direito. Tendo uma sentença a seu favor transitada em julgado em 1999, o que o Sport poderia fazer diante de tal Resolução da CBF? Ingressar com uma ação de cumprimento de sentença, com o intuito de se anular a decisão administrativa. A primeira instância da Justiça Federal julgou procedente o pedido, o que fez o Flamengo recorrer para a segunda instância, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região, e para o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nada foi alterado, mas me parece que o meu tio reagiu verbosamente contra essa empáfia do Judiciário brasileiro que se recusa a reconhecer a grandeza do time de José Roberto Wright.
Porém, como de praxe, o nosso Judiciário sempre concede nova chance de recurso, dessa vez perante o STF. Dentre os principais argumentos estava que a CBF, como entidade desportiva autônoma, segundo o artigo 217, I, da Constituição Federal, não poderia ter sua decisão interna desconstituída pelo Poder. O Supremo não aceitou tal argumentação, demonstrando profundo desconhecimento da tradição dos juízes desportivos do futebol brasileiro em relação ao time da gávea.
O STF, em 18 de abril de 2017, decidiu pela Coisa Julgada, que havia se dado em 1999, proclamando o Sport como campeão de 1987. Dessa forma, em respeito ao Princípio da Segurança Jurídica, a Coisa Julgada (art. 5º, XXXVI, da CF) é característica fundamental do Estado Democrático de Direito, por isso, a alegada autonomia da entidade desportiva não pode revisar decisões judiciais. Esclarecendo, Coisa Julgada é uma qualidade atribuída a uma sentença que se tornou imutável e indiscutível, logo não cabem mais recursos.
Ouço o meu tio maldizer o Judiciário brasileiro. Ele, em seu arroubo, proclama que o Judiciário também é um Poder podre no reino. Penso em apoiá-lo quanto à podridão, ao dizer sobre os nunca pagos gigantescos débitos tributários dos times; sobre o lucro recorde da FIFA com a Copa no Brasil, que não foi investigado; sobre termos um presidente da CBF que não pode sair do país, enquanto outro, já se encontra em prisão domiciliar nos EUA; sobre a “proteção” histórica que envolve o seu time… Mas deixo para outra oportunidade, em vez disso, fico assistindo ao meu querido tio, vestido à caráter, e sem os milhões do futebol, enaltecendo o seu Clube e reprovando o Judiciário.
GUILHERME DE CASTRO REZENDE