O negro no século XXI: integração ou exclusão?

Texto publicado no site www.cartadenoticias.com. Para ver a publicação acesse aqui.

 

Ao relaxar num domingo desses, entrei no Netflix para assistir a um filme. Foi-me indicado “Um Estado de Liberdade”, protagonizado pelo ator Matthew McConaughey. Apesar de um pouco extenso, a obra fez-me refletir sobre a situação do negro em nossa sociedade, de como ela continua profundamente discriminante.

O filme se passa em dois contextos históricos diferentes. O primeiro se deu na Guerra de Secessão (1861-1865), quando os Estados Unidos da América (EUA) encerrou formalmente o seu período escravagista, embora tenham surgidos grupos de linchamento, como a Ku Klux Klan. O segundo ocorreu em meados do século XX, quando leis segregacionistas ainda imperavam no sul, o que indica que a herança sociocultural preconceituosa era ainda a tônica. Ou seja, quase um século depois da grande Guerra Civil, negros ainda eram marginalizados, ao viverem afastados das escolas de brancos, dos assentos de brancos, dos restaurantes de brancos, de casamentos com brancos.

Inocentemente, fiquei quase feliz em ver que mais de 50 anos se passaram e já se vivia no século XXI, um século muito mais civilizado, sem discriminação étnica. Contudo, ao consultar o Mapping Police Violence (site sobre violência policial nos EUA), a probabilidade de um negro ser morto por um policial é três vezes maior do que a de um branco, sendo que, na maior parte dos casos, esse negro não estava armado, nem era suspeito de crimes hediondos. Em verdade, em 2016, alguns episódios confirmaram essa realidade: negros desarmados sendo mortos em vários estados norte-americanos, como Oklahoma, Carolina do Norte, Minnesota e Louisiana.

A hashtag #blacklivesmatter (vidas negras importam) brotou nas redes sociais, demonstrando que os negros continuam segregados e necessitados de um programa governamental inclusivo e transformador. Recentemente, a questão veio mais à tona ao se discutir no país a derrubada de estátuas de oficiais símbolos da Confederação na Guerra Civil, defensores do modelo escravista de produção. O filme não está tão distante assim da realidade do século XXI.

O Brasil não foge, infelizmente, dessa regra, contando com mais de três séculos de escravidão. Nossa abolição se deu em 13 de Maio de 1888, mas, com ela, veio também a marginalização do negro da educação formal, da habitação digna, do mercado formal de trabalho e da vida social. Ademais, houve, posteriormente, políticas públicas para embranquecimento da população, ao se incentivar a imigração de brancos europeus. Apesar de hoje serem mais da metade da população brasileira, os negros estão longe de possuírem as mesmas chances dos brancos, de acordo com dados do IBGE. Como exemplo, em 2015, os negros representavam 17,8% da parcela 1% mais rica da população, enquanto os brancos chegavam a quase 80%.

O Mapa da Violência brasileiro, edição de 2016 do sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, indica que os negros representam 70,5% do total de vítimas de homicídios por arma de fogo, morrendo 2,6 vezes mais negros do que brancos nesses crimes. O mito da democracia racial foi descortinado até pela relatora especial das Nações Unidas sobre questões de minorias, Rita Izsák, que chegou a dizer que “a violência, a criminalização e a pobreza continuam a ter uma cor no Brasil”.

Poder-se-iam apontar outras similaridades presentes no filme entre o Brasil e os EUA, como a opressão da mulher, seja ela negra, tendo que ceder às investidas sexuais do sinhô da casa grande, seja ela branca, tendo que se retirar de sua comunidade, por causa da desaprovação social ao seu marido. Em ambos os casos a mulher é vista como menos. Outra questão presente no filme e na vida dos dois países é a figura do Estado Confiscador. Por meio da tributação, o governo dos Confederados dizia apreender 10% da produção, mas, na verdade, havia um Estado explorador, sedento de recursos. O brasileiro sabe o que é essa sanha tributária. Até o sistema de saúde da época nos lembra da situação atual, visto que os oficiais do Exército tinham preferência no tratamento das lesões, furando fila de suboficiais com feridas mais urgentes. Qualquer semelhança é mera coincidência, aqui e lá.

Focando a questão racial, um início de mudança contra essa discriminação abjeta passa pelo Direito. No caso norte-americano, as leis segregacionistas foram revogadas, e políticas afirmativas foram criadas, inclusive o primeiro presidente negro dos EUA, Barack Obama, se beneficiou dessa ação ao estudar em Harvard. Quanto ao Brasil, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XLII, afirma que o racismo é inafiançável e imprescritível, além de promover o bem de todos sem preconceito de raça e cor (art.3º, IV) e de se guiar, nas relações internacionais, pelo repúdio ao racismo (art.4º, VIII). Ademais, em 2010 foi sancionado o Estatuto da Igualdade Racial, no intuito de se erradicar a desigualdade e a discriminação por raça. Externamente, o Brasil admitiu que é um país racista, no Governo de Fernando Henrique Cardoso, ao se aderir ao Plano de Ação de Durban e ao reconhecer a necessidade de se adotar políticas públicas para reverter esse fato.

Ações afirmativas, então, foram tomadas em relação à educação pública, quando várias universidades começaram a reservar vagas no Ensino Superior à população negra. As primeiras, na virada do século XX para o XXI, como a UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e a UNB (Universidade de Brasília), implantaram essa política e, após uma década, os números indicam que o desempenho de cotistas e de não cotistas não foi divergente, nem houve queda de qualidade. Assim, em 2012, o governo Dilma Rousseff sancionou a Lei 12.711, chamada de Lei de Cotas para instituições federais de nível superior.

Em 2014, nova Lei de Cotas (12.990) passou a reservar 20% das vagas para negros em concursos públicos, em cargos da administração federal. Diante de pressões de organizações várias contrárias à medida, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) ajuizou ADECON (ação declaratória de constitucionalidade), em 2016, para defesa desta lei, ou em melhores termos, a ordem dos advogados pediu ao Supremo que declarasse esta norma constitucional, o que foi julgado procedente, em junho de 2017. O Ministro Luis Roberto Barroso, de forma brilhante, expôs que a Lei cumpre com o princípio da igualdade em sua dimensão formal, de combate a privilégios e preconceitos; em sua dimensão material, de promoção da justiça social; e em sua dimensão como reconhecimento da cultura e simbolismo das minorias, de respeito ao pluralismo.

O velho argumento de que as cotas infringem o princípio da eficiência não merece prosperar, uma vez que a noção de meritocracia, baseada apenas em pontos, não permite dizer que um indivíduo é absolutamente melhor do que outro. Pelo contrário, a realidade não é feita apenas de competência técnica, mas também de pluralismo e de diversidade no serviço público. Uma melhor compreensão do outro pode muito bem representar um ganho essencial de eficiência. Talvez seja a hora de se aplicar o quarto princípio, apresentado pelo Estado Livre de Jones, mostrado no filme: “todo homem é um homem, se você pode andar sobre duas pernas, você é um homem”. Eis a igualdade em termos simplórios, que fazendeiros humildes do século XIX ousaram estabelecer, e civilizados do século XXI insistem em reverter.

GUILHERME REZENDE