Recentemente uma discussão veio à tona com a volta às aulas: vacinação e liberdade. Em um comunicado público, os governadores de Minas Gerais, Romeu Zema (Partido Novo), e de Santa Catarina, Jorginho Melo (Partido Liberal), reunidos com outros políticos, propuseram medidas normativas para o fim da obrigatoriedade de vacinação nos casos de matrícula e rematrícula de alunos. O fundamento aparente era uma certa incompatibilidade entre vacinação e liberdade de escolha de alunos e pais. O fundamento, em realidade, é o uso simplista da liberdade para agradar parcela incauta da população.
Nelson Rodrigues uma vez disse que toda unanimidade é burra. Parece que a polarização também emburrece as pessoas. Quando assumimos um lado, como um time de futebol, a paixão anuvia o outro. Só o nosso time está certo, tudo o que presta é nosso; por vezes, o outro é desumanizado. Por isso, um esforço reflexivo sobre os assuntos não é o pilar de nossa sociedade, mas, sim, saber a qual espectro político pertence o emissor da mensagem, independentemente do conteúdo.
Se o outro defende vacina que salva, eu defenderei a liberdade de não vacinar! São falácias que muitos assumem como a verdade imperturbável somente para não concordar com aquele lado. Um agravante vem dos desvios dos meios informacionais do nosso tempo, as chamadas fake news. Elas não são exclusivas de um time; estamos infelizmente cercados pela má-fé. Especificamente em relação às vacinas, utilizaram a imagem e a fala do Dr. Dráuzio Varella alertando a população de que a vacina muda o DNA e causa câncer. Tudo falso, feito perfeitamente para enganar.
Mais de 100 anos de vacinação salvando vidas, extinguindo sarampo, varíola, poliomielite, entre outras, dentro de um programa modelo mundial, que é o brasileiro, surgido não no governo anterior ou no atual, mas há muito tempo, não são capazes de parar um cidadão, diante de uma fake news, para fazê-lo pensar sobre o absurdo de determinadas teorias da conspiração. Se não vamos de ciência, falemos de nosso ordenamento jurídico.
“O Zé Gotinha sofre ataques constantes por politicagem anticientífica e por uma má compreensão do direito à liberdade”
Uma observação: não apresento leis do governo anterior ou do atual. Nossa Constituição surgiu na mudança de regime ditatorial para o democrático. Nela, a saúde é direito de todos e dever do Estado. Está lá no artigo 196. Se é direito de todos, todos temos o dever de não somente cobrar o Estado pela sua prestação, como também de contribuir para não agravar ou colocar em risco o direito do próximo.
Em seguida, temos o artigo 14, parágrafo primeiro do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que foi editado em 1990. Há obrigatoriedade da vacinação. Aliás, criança e adolescente até 16 anos é absolutamente incapaz, sendo representado em determinadas escolhas civis. Por isso, os governantes estaduais não podem juridicamente ignorar legislação específica ao conceder um direito pleno a indivíduo em formação ainda. Usar uma palavra bonita como a liberdade para angariar voto em detrimento da saúde pública e da Lei é passível de improbidade administrativa por atentar contra deveres de honestidade e de legalidade, uma vez que as medidas normativas legais desses estados e municípios lesam flagrantemente a administração da saúde como bem jurídico coletivo.
A liberdade de escolha pelos representantes dos menores não é absoluta. A ideia de “meus filhos, minhas regras” não é compatível com a vida em comunidade.
De forma alguma, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao interpretar a legislação pátria, autorizou a vacinação compulsória, à força, como as notícias falsas propagam. Há, sim, a vacinação obrigatória, o que é bastante diferente. A obrigatoriedade é a todos imposta, não há discriminação, salvo por motivo científico ou constitucionalmente relevante. Caso não queira se vacinar, você não receberá o Zé Gotinha bravo em sua casa, mas terá uma sanção por descumprir uma obrigação geral.
“Usar uma palavra como ‘liberdade’ para angariar voto em detrimento da saúde pública e da Lei é passível de improbidade administrativa”
O STF, na ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 1123, em decisão liminar, suspendeu os decretos de vários municípios de Santa Catarina, por conta da urgência em se proteger as crianças, na volta às aulas, de um ambiente de insegurança sanitária. A necessidade de imunização, segundo o Ministro Zanin, está acima de eventuais pretensões individuais. Não é uma situação de interferência de poder, em que o Supremo assume a posição de legislador. Pelo contrário, nesse caso, o Poder Judiciário está aplicando não somente a Constituição e o ECA, mas também o Plano Nacional de Imunização, estabelecido pelo Poder Executivo, com recomendações inclusive da Organização Mundial da Saúde.
Ninguém quer definir a convicção filosófica, religiosa ou moral do cidadão, como ninguém vai realizar uma imunização à força. Porém, o Estado tem o dever de garantir saúde a todos, um ambiente sanitariamente seguro; portanto, medidas restritivas, como multa, impedimento de frequentar determinados lugares, de fazer matrícula em escola são permitidas pela lei, e não pelo desejo do governante da direita ou da esquerda.
O Zé Gotinha, agora com 37 anos, com fama reconhecida mundialmente pelo controle efetivo de diversas doenças, como sarampo, a coqueluche, a poliomielite e a difteria, sofre ataques constantes por politicagem anticientífica e por uma má compreensão do direito à liberdade. Não podemos baixar a guarda, é dever de todos impedir que o Zé seja nocauteado feito Bambam!
* Professor e Advogado do escritório Jayme Rezende, com canal no Youtube Direito de Prosa.